sábado, março 05, 2005

Escolhas...

Ele não queria ser diferente. Não o desejou. Aquele ser reflectido não era ele. Sentiu repúdio por si mesmo. Querer mostrar-se forte perante os outros. De ser como os outros. De tentar agradar os outros. Aqueles olhos fitavam-no e ele correspondia-lhes da mesma forma. Olhos castanhos, sim, castanhos-escuros como um tronco. Continuando a fitá-los, puxou a manga esquerda da sua camisa para cima. Desviou o olhar para as marcas da tragédia de outrora. A cicatriz principal de 11 cm partia do início da palma da mão, prolongando-se pelo resto do pulso, no sentido do cotovelo, brilhando intensamente, comprovando que tudo não passara de um sonho.

“Discussão familiar. Injustiça. Depressão.
A vontade de fugir, de querer desaparecer assim que pegou na tesoura e a primeira lágrima de um choro acumulado e escondido decidiu cair. Puxou a manga esquerda e elevou o pulso.
Frio.
O metal da tesoura estava frio assim que penetrou na pele. Uma mancha vermelha rodeou a lâmina. Ele continuava a espetar cada vez mais fundo. Não lhe doía. Nada mais lhe doía. No final levantou a tesoura e, enfurecido, voltou a cortar-se várias vezes, provocando diversos cortes: uns mais profundos, outros mais superficiais. Sem forças para mais, atirou a tesoura para o lavatório, salpicando-o de sangue, e retirou do armário esquerdo, da segunda gaveta, uma caixa de Benneron. Ainda haviam sobrado 5 comprimidos. Talvez acelera-se o processo, pensou ele, se bebesse com álcool. Retirou-os da sua protecção e tomou-os, colocando a mão em forma de concha na água límpida que escorria da torneira e saia vermelha pelo ralo. Começou a procurar o frasco de álcool mas logo teve de se agarrar à maçaneta do armário branco tal foi a súbita tontura. As lágrimas que até então teimavam em sair, pararam de repente. Ele sentiu-se a enfraquecer, a aproximar-se do chão, ajoelhando-se num gesto bruto, rápido e desconexo enquanto a sua visão ficava turva e as náuseas tomavam posse de si próprio, comandando-lhe o espírito. Fitou o tecto branco da casa-de-banho assim que a cabeça tombou nos azulejos do chão. Ao longe ouviu um grito. Um grito abafado mas era-lhe indiferente.
Luzes.
Diversas luzes ofuscavam-lhe os olhos assim que tentou abri-los. Conseguiu vislumbrar mesmo à sua frente um rosto com uma máscara branca. As pálpebras voltaram a fechar-se. Obrigou-as a abrir de novo. Conseguiu ver a silhueta de alguém a pôr um revestimento à volta do pulso de modo a estancar o sangue. Fechou de novo os olhos. Sentiu uns dedos a forçarem a entrada na sua boca, obrigando-o a ter contracções estomacais e a vomitar tudo. Voltou a perder a consciência.
Acordou no dia seguinte. Um sentimento de arrependimento apoderou-se dele. Lembrava-se bem do que as vozes espirituais lhe haviam dito num dos seus muitos estados inconscientes. Ele era livre de pôr termo à sua vida, ninguém o impedia nem ninguém o obrigava. A escolha era dele e, apenas a ele, lhe caíam as consequências do seu acto. Apesar de tudo, nada iria ser resolvido. Muito pelo contrário, só aumentaria ainda mais os problemas.”

Voltou a fitar os seus olhos no espelho. Não ia voltar a tentar pôr termo à sua vida. Os seus problemas tinham sempre uma solução à porta, era só esperar que o sinal de esperança aparecesse e tudo se resolveria. O mundo não parava com o seu sofrimento, muito pelo contrário, continuava no seu eterno movimento. Mas acima de tudo, jurou para si mesmo: jamais voltaria a dar sofrimento, dor e tristeza às pessoas que gostavam realmente dele. Essas sim, tinha de se preocupar.