segunda-feira, agosto 29, 2005

Despedidas no lago

Levantou-se da cadeira em frente à secretária agora cheia de envelopes e folhas escritas. Retendo ao máximo o choro encaminhou-se até à janela por onde a luz daquele belo dia de sol entrava iluminando todo o quarto, mas sem conseguir revelar o seu lado mais obscuro – ele próprio. Distraiu-se com as crianças que brincavam no pátio, pouco à frente do seu prédio, saltando e rindo às gargalhadas; ao mesmo tempo, reparou num casal de velhos, sentados num banco de jardim, que olhavam alegremente para a miudagem, comentando por vezes entre si, unindo as cabeças enquanto apertavam as mãos qual dois adolescentes. Encostou-se à janela, de costas voltadas para aquela imagem alegre do seu pátio, e deixou-se levar por um choro compulsivo, erguendo toda a sua mágoa e tristeza, sentindo-se mais vazio interiormente, se assim fosse possível. Tapando a boca e o nariz de modo a abafar o barulho ofegante da respiração para que ninguém em casa o ouvisse, afastou-se da janela e voltou a pegar na caneta. Tinha de escrever aquela carta de despedida, justificando o porquê do seu acto, e pedindo por favor que nenhum dos pais se sentisse culpado, arrependido ou com outro sentimento que pudesse corroer as suas almas. Começou de novo a escrever, aumentando a velocidade da sua mão sobre o papel conforme o seu interior se ia abrindo, tornando mais fácil a escrita – era essa a vantagem de ir ao limite dos sentimentos, pois assim poderia expressar aquilo que realmente sentia e desejava dar a conhecer. Poucos minutos depois, e estando mais calmo, dobrou a folha, colocou-a num envelope, fechou-o e, depois de escrever no local do destinatário a palavra “pais”, atirou-a para o grupo de outras cartas que tinha escrito para os amigos mais chegados que necessitavam, na sua opinião, de uma justificação para que, tal como os seus pais, não desenvolvessem um sentimento que os corroesse por dentro. Com os olhos vermelhos e a face húmida, agarrou o grupo de envelopes, pegou no seu polar bege e nas chaves de casa e saiu o mais depressa possível do quarto em direcção à saída, passando pela porta da sala onde os seus pais viam distraidamente televisão, gritando que ia comprar mais um caderno para as aulas de química. Fechando a porta convicto, esforçou-se por não voltar a chorar de tal forma que, não esperando pelo elevador, desceu as escadas a correr sem olhar para mais nada, sentindo apenas o vento a bater no seu corpo, na sua cara, nos seus olhos.
Assim que a porta da rua se fechou atrás de si, vestiu o polar e avançou no caminho que o levava ao parque perto da sua casa, com um lago onde patos e cisnes nadavam e viviam enquanto coelhos andavam na relva, à volta das pessoas, numa tentativa de receberem algo para comer. Já no parque, decidiu tentar acalmar-se sentando-se sobre a relva com as costas apoiadas num dos pinheiros e fechando os olhos. Quando já se sentiu mais apaziguado levantou-se e começou a movimentar-se em direcção à ponte que ligava cada margem do lago, onde pode observar os cisnes que mexiam o seu longo pescoço para diversas partes do corpo como se estivessem a lavar as penas, ao mesmo tempo que um grupo de patinhos bebés cercavam a progenitora, piando desalmadamente. A imagem era bastante bonita e a mensagem de paz e de esperança que emanava era facilmente captada e sentida. Enquanto respirava fundo de olhos fechados ouviu um barulho que lhe roubou a atenção, obrigando-o a virar a cara para a sua direita onde reparou a poucos metros de distância num jovem, mais ou menos da sua idade, vestido com roupas velhas e usadas, que o fitava intensamente à medida que se aproximava dele. Assim que o alcançou, o jovem retirou-lhe os envelopes da mão direita, abanando a cabeça em sinal de discordância, e atirou-os ao ar, onde foram cair, um a um, sobre a água fria do lago. No final, abraçou-o e deu-lhe um beijo na testa, murmurando de seguida ao ouvido para que “não te deixes abater, ainda não chegou a hora”. Assim que lhe entregou o aviso, o jovem virou-lhe as costas e começou a andar na direcção oposta, afastando-se cada vez mais.

Foi acordado pela comichão na sua mão direita, obrigando-o a abrir os olhos e a reparar que um dos seis coelhos que estavam à sua volta lhe estava a cheirar a mão. Tentou a afastar os coelhos, mas era praticamente impossível – provavelmente eles já estavam habituados à companhia dos humanos – e limitou-se a esfregar os olhos com as costas das mãos e a espreguiçar-se ainda sentado e com as costas apoiadas no pinheiro. Num flashback recordou-se do jovem na ponte, dos cisnes, mas sobretudo nos envelopes a balouçarem no ar e a cairem no lago. Com esta ideia fixa na cabeça levantou-se e olhou em volta de modo a encontrar algum dos sobrescritos, mas nada. Correu em direcção ao lago onde encontrou cisnes que mexiam o seu longo pescoço para diversas partes do corpo como se estivessem a lavar as penas ao mesmo tempo que um grupo de patinhos bebés cercava a progenitora, piando desalmadamente…

«Não chegou a hora»