sexta-feira, dezembro 16, 2005

Por detrás da porta


Uma das portas daquele longo corredor austero encontrava-se, pela primeira vez em muito tempo, fechada, escondendo no seu interior a cama com a mesa-de-cabeceira perpendiculares à janela, com vista sobre a cidade de Lisboa, e um pequeno sofá castanho, velho e gasto ao lado da janela e em frente à porta. O enfermeiro aproximou-se lentamente da porta, hesitando em abri-la assim que colocou a mão sobre a maçaneta. Lembrava-se bem do que o seu colega do turno anterior lhe havia dito momentos antes.
«Não te admires que ela te responda mal ou que comece a gritar. Ela passou a noite toda a fazer isso, de modo que tivemos que lhe dar um calmante. Vê se ela está bem que eu já não ‘tou com paciência»
O enfermeiro achou aquela atitude de impaciência completamente desnecessária. Que problema tinha de a doente estar agressiva? É normal nos casos dela, que por sinal não são poucos, comportarem-se assim. Mais grave seria se ela não reagisse e, aí sim, seria de nos preocuparmos realmente.
Voltou a concentrar-se na porta. O mais assustador de tudo devia-se ao facto daquela porta estar fechada, revelando a presença de alguém desconhecido, de alguém que ele nunca tinha estabelecido qualquer contacto. Pensou no que haveria de dizer assim que entrasse, mas percebendo que não valeria a pena pois só aumentava ainda mais a ansiedade, experimentou bater à porta, com o coração a bater loucamente, o suficiente para conseguir ouvir os seus batimentos. Não obteve resposta. Voltou a bater três vezes e, respirando fundo com os olhos fechados, girou a maçaneta e entrou.
Fechou a porta atrás de si sem desviar os olhos da silhueta de uma mulher, de costas voltada para ele e de frente para a janela, que contrastava com a claridade que invadia o quarto naquela manhã de Primavera. O enfermeiro cumprimentou-a com um “bom dia”, à medida que se aproximava cautelosamente dela. Já perto da cama, retirou o registo de notas e leu-o na diagonal. Ali estava a prova que ele tanto temia: tentativa de suicídio devido a uma depressão relativamente recente. Não fora a primeira. Arrumou o registo de notas de novo no suporte pendurado aos pés da cama e retomou a sua atenção para a sua paciente, que continuava impávida e serena, olhando o vazio. Não obtendo resposta, tentou chamar-lhe pelo seu nome, numa nova tentativa de estimular a comunicação. Se havia situação que ele nunca sabia como reagir, esta era uma delas. Não pela razão em si, mas sim pelo facto dela, como doente desconhecida, não ser capaz de falar, de não querer conversar com ele, de modo a ser muito mais fácil estabelecer uma relação entre ambos, uma relação de partilha e de inter ajuda.
Continuou a andar em frente, colocando-se ao lado da mulher, e observou a paisagem de Lisboa, iluminada por todos os raios daquela radiosa estrela amarela. Enquanto se encontrava distraído a observar a cidade, algo lhe trouxe completamente de novo à realidade; sentiu que, por instantes, através do reflexo no vidro, o olhar dela se havia desviado para ele, que pelo menos tinha reparado na presença dele, mas assim que tentou encontrar os seus olhos nos dela, ela, aparentemente, já teria desviado a sua atenção de novo para a paisagem. O coração dele recomeçou a bater cada vez mais rápido. Será que ela tinha mesmo notado na sua presença? Qual seriam os pensamentos dela sobre ele? Bons? Maus? Mais valia não ter entrado naquele quarto ou foi realmente importante mostrar-lhe que ainda há alguém preocupado com ela? Tentou concentrar-se de novo nos carros, nas casas e nos montes de Lisboa, mas era-lhe complicado – instalou-se um período de silêncio, um período perturbador para ele, pois não sabia o que dizer com medo que tocasse num ponto íntimo e pessoal que ela, a paciente, não gostasse de relembrar e/ou falar.
Não soube contar quanto tempo passaram juntos a olhar a cidade pela janela, mas à medida que os minutos passavam, ele começou a sentir uma necessidade crescente de falar, de conseguir acalmar a dor dela, de suavizar a sua tristeza ou de ajudá-la, pelo menos, a passar por todo aquele problema. Sem saber se por impulso ou por não aguentar mais o silêncio (ou se pelas duas) ele abriu a boca e começou falar. As primeiras palavras articuladas custaram bastante, mas à medida que ia falando, as mesmas saíam mais fluentemente, o que o acalmou mais, dando-lhe força para continuar. Falou sobre o tempo lindo que estava nesse dia, da beleza única do sol e da luz que emana, dos pormenores escondidos da capital e de factos engraçados que aconteciam naquele meio hospitalar. Contou sobre as dificuldades diárias com que se deparava, do medo da reacção que os outros poderiam ter com alguma coisa que ele ingenuamente dissesse, dos receios em que algo lhe fugisse do controlo. Referiu o quanto era difícil ultrapassar certas situações e que muitas se tornavam desesperantes e a vontade de desaparecer se tornava bastante tentadora e apelativa. Mostrou-lhe o quanto ela não está sozinha neste mundo, pois todos nós sofremos, vamos nos abaixo com pequenas ou grandes coisas, mudamos de humor drasticamente, mas a vida continua e não é por estarmos mal que o mundo deixa de girar, continuando com o seu movimento imparável de e para o infinito.
Parou de falar tão rápido da mesma forma como começou, sentindo a frequência do seu coração e da respiração a voltarem ao normal. Sentindo-se mais calmo desviou o olhar para o reflexo da sua doente. Reparou que lágrimas lhe escorriam dos olhos vermelhos e húmidos pela cara, em direcção ao pescoço, sem ela ter se dado ao trabalho de as esconder, passando com a mão pela face de forma a limpá-las. Mais uma vez por impulso, colocou os seus braços em cada ombro dela, como se quisesse protegê-la, ajudá-la, fazer entender-lhe que não está sozinha e que tem sempre alguém ali, pronto para apoiá-la no que for preciso. Respeitando o seu silêncio, afastou-se calmamente dela e deu meia volta para se vir embora do quarto, sentindo-se observado, mesmo estando de costas para ela. Assim que se aproximou da porta, algo lhe fez suster a mão sobre a dita maçaneta: um “Obrigado” sincero, único e calmo se fizera ouvir. O enfermeiro sorriu, disse-lhe que não tinha que lhe agradecer e posou a mão sobre a maçaneta, girando-a para a esquerda e saindo para fora do quarto.


Nota: este texto foi para um trabalho de DPS, uma cadeira do meu curso. Custou-me um bocadinho a fazer até porque praticamente só foi feito em duas madrugadas seguidas, por isso tinha que pôr =)

sábado, dezembro 10, 2005

Porquê continuar a viver?
Quando nunca podemos ter aquilo que queremos,
Quando amamos aquilo que não podemos,
Quando pensamos no impossível…

Farto da vida,
Farto desta obsessão pelo amor,
Farto de me iludir,
Farto de sentir esta merda, farto…

Querer voar para longe,
Querer esconder-me num buraco e nunca mais de lá sair,
Querer sentir-me amado, desejado, importante para alguém,
Querer o nada, Querer…

Perder a alegria de viver,
Perder as esperanças ilusórias,
Perder quem gostamos,
Porquê continuar com isto?