domingo, outubro 21, 2007

Três passos e um dia morremos

O próximo texto corresponde a um trabalho que fiz para uma cadeira da faculdade. Foi nos proposto escrever uma carta ou um texto sobre a situação de me ter sido diagnosticado que ia morrer dentro de 3 meses e como vivenciaria isso, juntamente com os meus ultimos desejos e receios. Foi esta a minha carta:
1º DIA

Observo pelo vidro do carro as casas a passarem rapidamente, uma atrás da outra, como um ponteiro de um relógio que marca o infinito tic-tac dos segundos. Desdobro mais um lenço, assoo-me e tento enxugar as lágrimas. Ainda tenho muito presente na memória a imagem do médico, sentado à minha frente, naquele consultório abafado, a pedir-me para me sentar na cadeira almofadada que estava do outro lado da secretária branca. Falou-me quase num murmúrio, perguntando-me como me sentia. Recordo-me de não ter gostado da forma como ele formulou esta simples frase, mas respondi-lhe educadamente que me sentia bem, e agradeci-lhe pela preocupação. Começou a comparar a vida a um livro. Segundo ele, a vida era um livro em aberto e a todo e qualquer o momento escrevemos uma nova linha. Falou também do livro ser algo efémero, pois um dia a tinta da caneta iria acabar e quer queiramos, quer não, as páginas ficariam em branco a partir desse instante, impossibilitando-nos de escrever mais. Lembro-me de ter começado a ficar assustado com o rumo da conversa. Sempre me enervou rondar um assunto, sem o abordar directamente. Respirou fundo e, olhando-me nos olhos, disse-me que o resultado dos exames era claro e que por ele, eu nunca teria de passar por uma situação destas, mas dado as estatísticas e o facto de tratar-se da minha vida sentia-se obrigado a confrontar-me com a realidade. Recordo-me da sua expressão facial no momento em que me disse que só tinha três meses de vida. Aquele ar de compaixão, de pena; ar de quem me considera como um caso perdido, que não vale a pena continuar a lutar para melhorar. Fiquei parado, inexpressivo, fixando-o intensamente. Lembro-me vagamente de ele me ter perguntado se tinha percebido o que disse. Abanei a cabeça verticalmente, em sinal de concordância, sem proferir uma única palavra. Idiota, é óbvio que tinha ouvido. Em questão de segundos vejo-o a meu lado, com um braço sobre os meus ombros, respeitando o meu silêncio. Não consegui mover um gesto que fosse, olhando simplesmente para a cadeira vazia à minha frente. Dizia-me que compreendia a minha dor, mas que o diagnóstico era claro. Trágico, e sem ser possível de mudar. Comecei a sentir os olhos a humedecerem e a garganta a doer com o esforço para não chorar. Quando consegui falar, perguntei-lhe se ele tinha a certeza do que me havia dito. O médico respondeu-me que sim, lamentando o facto de as coisas serem como eram. Senti umas lágrimas a escorrerem pela minha cara, mas rapidamente limpei-as com as mãos. Voltei a falar e perguntei-lhe se os meus pais já sabiam. Ele disse-me que não, questionando-me se queria que ele lhes dissesse. Respondi-lhe que sim.
Desisto de olhar pela janela do carro e observo o meu pai a conduzir. Tenta fazer-se de forte, mas sei que ele interiormente está tão mal quanto eu. O mesmo acontece com a minha mãe, que está sentada a seu lado. Vejo que ainda tem os olhos vermelhos e chorosos de há pouco. Ambos procuram distrair-se com a monótona paisagem da estrada à sua frente, remoendo o que ouviram, sofrendo em silêncio. Volto a lembrar-me da conversa de há pouco. Lembro-me de sentir a porta do gabinete atrás de mim a abrir-se e de alguém entrar. Oiço a voz dos meus pais, enquanto cumprimentam o médico com um aperto de mão, e sentam-se a meu lado. Voltei a ouvir a história do livro em aberto, mas a minha atenção já estava longe daquela sala. Remoendo a minha actual situação, um turbilhão de caras de pessoas conhecidas, de lugares que nunca pude visitar, de coisas que gostaria de fazer mas que por circunstâncias da vida não pude pô-las em prática, assaltaram a minha cabeça sem ordem, sem nexo. Recordo-me de ter pensado que já não iria ver mais aquelas pessoas que visualizava mentalmente, que não poderia visitar os tais lugares que tanto queria, nem fazer determinadas coisas que gostaria de ter feito. Ouvi qualquer coisa sobre três meses e volto ao gabinete do médico, vindo do mundo dos meus pensamentos. Lembro-me de ver os meus pais com os olhos brilhantes, completamente imobilizados com o que tinham ouvido. A minha mãe, de braços cruzados, pergunta ao médico se realmente não é possível fazer mais nada. Ele respondeu-lhe que não, tal como me tinha dito.
Chegamos finalmente a casa. Fizemos a viagem desde Lisboa até à Parede em completo silêncio. Penso que noutras alturas teria achado hediondo não ouvirmos, no mínimo, uma estação qualquer de rádio. Hoje não me importei. Aliás, pouco me interessava o mundo exterior de tal modo estava perdido no meu mundo interior. Senti-me distante do que se passava à minha volta, como se tudo fosse um sonho que não teimava em acabar.


3º DIA

É o segundo dia que não fui à escola. Tranquei-me no meu quarto, pois não consigo parar de chorar em cima da minha cama. Não vejo nada à minha volta que me suscite algum tipo de interesse, sem que não me irrite primeiro e me faça ter vontade de estragar, partir, de soltar toda esta raiva que me invade o espírito. Oiço a voz ora do meu pai, ora da minha mãe, atrás da porta trancada, a pedirem-me para entrar. Grito-lhes que não quero ninguém ao pé de mim, para me deixarem em paz. Não percebem que ter de lhes dizer isto, ainda me magoa mais. No entanto, não consigo evitar, e volto a gritar para me deixarem sozinho, enquanto me levanto da cama e dou com o punho uma pancada violenta na porta. Volto a ter um novo ataque de choro, tão forte quanto o último e sinto-me sem força nas pernas. Ponho-me de gatas no chão e observo as lágrimas a caírem no chão, diante dos meus olhos, enquanto tento respirar. Não percebo porque é que me tinha de acontecer isto. Não consigo parar de culpar Deus pelo que me está a fazer. Não consigo parar de culpar o meu corpo, por não ser capaz de ser “normal”, de ser saudável, como o das outras pessoas. Odeio não conseguir parar de chorar, o que ainda mais alimenta esta fúria que não consigo parar de sentir.


5º DIA

Acordei hoje de manhã com mais uma mensagem de um amigo da escola, a perguntar se estava tudo bem comigo. Respondi-lhe a despachar que estive estes dias com gripe, e que estava a melhorar, desligando o telemóvel em seguida.
Sinto-me estranho hoje. Olho para o meu quarto e sinto que ele não é meu. Não tenho qualquer tipo de sentimento afectivo que me faça lembrar de alguma recordação em especial. Sinto-me indiferente a tudo à minha volta. Caminho, como, bebo e respondo a perguntas que me colocam quase de forma mecanizada.
Volto para a minha cama e fico lá deitado.

8º DIA

Voltei à escola, pois os meus pais disseram-me que não podia desistir, que devia ir à luta. Adoro estas frases pré-feitas. Para não me enervar mais, faço o que eles me dizem.
Empurro a pesada porta de entrada e entro no interior da escola. Espero não encontrar nenhuma cara conhecida e acelero o passo, sem desviar o olhar do chão.
Quando me aproximo da sala onde vamos ter a aula, vejo como é óbvio imensas caras conhecidas, que se aproximam de mim e me abraçam, perguntando-me felizes da vida, como me sinto. Disfarço um sorriso, e respondo que estou bem. E que estou melhor da porcaria da gripe. Por dentro, choro. Choro em parte pela felicidade em ver umas caras que há tanto tempo não via, que tanto significam para mim, que tantas saudades sentia sem me aperceber. Talvez por essa razão, a outra parte de mim chora por saber que nunca mais as vou ver. Sinto-me tão pequeno naquele momento, tão frágil. Tenho consciência que não vou conseguir controlar mais o choro e que não tarda os meus olhos atraiçoarão o meu sorriso. Tenho de ser forte e manter a porcaria do sorriso.

9º DIA

Estou agora fechado numa sala de estudo com mais dois colegas da turma. Deixei de conseguir ter controlo no choro e agora não consigo parar de o fazer. Os meus dois amigos respeitam esses momentos, mas não sabem como me ajudar. Sentem-se perdidos, uma vez que não percebem o que se passa comigo. Não posso dizer-lhes que daqui a menos de três meses... Não, não quero que eles sofram. Amo-os como grandes amigos que são, tal como amo a minha família mais próxima. Para mim, o amor manifesta-se a vários níveis, como a nível familiar ou nível da amizade. É redutor considerá-lo só como parte integrante das relações amorosas. É muito mais que isso.
Tento acalmá-los dizendo para não se preocuparem, que está tudo bem, apesar de ter consciência que dizer isso é o mesmo que não dizer nada.

12º DIA

Hoje é domingo. Os meus avós vêm jantar cá em casa. Pedi aos meus pais para não lhes dizerem sobre a minha situação, pois temo por eles e não quero que eles sofram. Não merecem que sofram.

23º DIA

Hoje, durante a noite, voltei a ter outra crise de choro e de raiva. Ainda tenho as marcas das unhas na palma das mãos e na cara, em cada bochecha. Contínuo sem entender porque é que tenho de passar por isto. Afinal, que Deus é este que me põe a mim e ao outros a sofrer desta maneira. PORQUÊ É QUE TENHO DE PASSAR POR ISTO?
30º DIA

Faz hoje um mês e não consigo parar de sentir que foi tempo perdido. Perdi tempo demais a lamentar-me. Perdi tempo de mais a chorar, enquanto podia estar mais perto da família e dos amigos. Tenho tanta coisa para fazer e para aproveitar. Não me sinto melhor, mas sinto-me diferente, com outro ânimo. Decidi não deixar de ir à escola e de continuar a ter a minha vida dita normal como tenho feito até agora. Prefiro manter-me ocupado, pois assim consigo gerir melhor o meu tempo. Além disso, a escola já não é neste momento uma prioridade e há tanto na minha vida que posso apostar mais. Vou passar mais tempo com a família e amigos. Vou apreciar mais o mundo que temos à nossa volta. Vou deixar de me preocupar com coisas supérfluas. Quero abraçar uma árvore ou dar uma nota de dez euros aquele que cego que todos os dias vejo no metro. Quero viver um dia de cada vez. Um dia como se fosse o último.


48º DIA

Hoje no comboio, a caminho de casa, pus-me a observar as pessoas à minha volta. Pensei na quantidade de pessoas que deveriam estar a passar pela mesma situação que eu. Naquela carruagem deveria haver pelo menos uma que estivesse ou conhecesse alguém nessa situação. Não sei porque me fui lembrar disto, pois só me fez voltar à memória que o meu tempo é curto. Sinto vontade de chorar outra vez, mas tento controlar-me olhando o mar a banhar a costa. Perto de chegar à Parede, decido permanecer no comboio e sair em S. João do Estoril, para ir passear no paredão de Cascais.

52º DIA

Durante esta noite vomitei três vezes e tive perto da manhã um pico de febre. Desta forma, a minha mãe e eu achámos melhor ficar em casa e, portanto, não fui à escola.
Lembrei-me de escrever uma carta a cada pessoa significativa para mim, deixando-o em envelopes com o nome respectivo. Não deixei de transcrever o quanto a pessoa foi e é importante para mim. O quanto devia ter dito mais vezes “gosto muito de ti” ou “amo-te” quando me deixava vencer pelo embaraço, e acabava por não o dizer. Relembrei em cada carta os bons momentos que passei com essa pessoa, o quanto me diverti, o quanto me senti feliz e o quanto ela me ajudou na minha vida. Agradeci desta forma tudo o que fizeram por mim. Pedi desculpa se por alguma razão os magoei ou os fiz sofrer. Despedi-me relembrando que não queria choros ou tristezas. Pedi para relembrarem os bons momentos que passámos, as adversidades que ultrapassámos e o quanto isso fomentou essa relação. Á minha família acrescentei o modo como gostaria que a minha morte fosse celebrada. Pedi para que lutassem para que os meus órgãos fossem doados e que o meu corpo fosse cremado, numa cerimónia simples e rápida. Preferencialmente sem corpo exposto ou velório que, a meu ver, só prolongam o sofrimento. Gostava que deixassem as minha cinzas num canteiro com as flores que eu mais gosto: rosas vermelhas. Pedi também que o que restasse no meu quarto fosse doado a qualquer instituição de ajuda, não me importa qual.
Depois de escrever as cartas, decidi procurar fotografias em que essas pessoas aparecessem e juntei-as aos respectivos envelopes. Sei que a memória é a melhor arma para recordarmos uma pessoa, mas uma fotografia transmite-nos a segurança de que nunca a esqueceremos.
Tenho vindo a pensar muito neste últimos dias sobre se devo ou não dizer aos amigos mais próximos que irei morrer. Tentei colocar-me no lugar deles, e sei que dessa perspectiva preferia muito mais saber que um amigo meu iria morrer dentro de tantos dias do que não sabê-lo. Assim, podia aproveitar da melhor forma esses últimos momentos junto dessa pessoa. Decidi contar-lhes.

60º DIA

Hoje dormi bastante mal, porque estou muito assustado pelo facto de já só me restar um mês de vida. Tenho rezado bastantes vezes, ultimamente, o que de certa forma, me faz sentir mais calmo.
72º DIA

Estou muito triste por não ter mais tempo para viver. Falta-me viver tanta coisa que é impossível reduzir tudo a menos de um mês. Isto tudo faz-me chorar muito mais facilmente. Não há momento que os meus olhos não estejam húmidos.
Tenho me sentido mais cansado ultimamente, os episódios de febre e vómitos têm sido mais frequentes.

79º DIA

Hoje acordei no Hospital. Estava deitado e ao lado da minha cama estava a minha mãe, sentada a olhar para mim. Notei que ela tinha estado a chorar. Tentei olhar nos seus olhos vermelhos e inchados, e perguntei-lhe o que tinha acontecido, ouvindo a sua voz como se ela quase estivesse no outro lado do mundo. Ouvi qualquer coisa sobre desmaio, escola e ambulância, mas depressa voltei a perder os sentidos.

82º DIA

Hoje acordei com os meus avós ao lado da minha cama. Estou bastante feliz por vê-los, apesar de estar com o coração partido por vê-los tão abatidos. Não me sinto com força para chorar como antes, mas estou bastante triste por ver os outros mal. Não quero que sintam mal por eu estar assim. Não quero mesmo. Especialmente a minha família e os meus amigos mais chegados.
Os meus pais trocaram agora com os meus avós. Estou cansado, mas sentir a minha família ao pé dá-me força. Não entendo porquê, mas também não interessa. Sei que me faz sentir seguro e com menos medo. Preciso mesmo deles e agradeço-lhes por isso.

85º DIA

Gostei imenso de hoje ter amigos e colegas da escola a visitarem-me. Sei que eles estão a sofrer bastante e custa-me não poder fazer nada mais que sorrir e dizer, com esforço, que está tudo bem, com excepção do facto de no serviço não me darem chocolates. Não sei como ainda tenho cabeça para brincadeiras, mas pelo menos consegui um sorriso por parte deles.
86º DIA

Hoje sinto-me bastante bem. Melhor que na última semana. Não sinto tanto cansaço a falar, nem oiço as vozes à minha volta tão longe de mim. Apenas me sinto com sono. Vejo os meus pais à esquerda da minha cama. Ambos estão com os olhos, inchados e envoltos em lágrimas, mas forçam um sorriso. Digo para não terem medo, porque estou melhor. Consigo finalmente dizer o quanto os amo, mas depressa volto a adormecer. Acordei outra vez e não vejo ninguém ao meu lado. Sento-me na cama, com os pés suspensos, e reparo que as cortinas estão fechadas. Saio da cama para entender o que se passa, no preciso momento em que dois enfermeiros puxam as cortinas em direcção à minha cama. Num relance, vejo os meus pais encostados à parede, estão abraçados e a chorar. Á frente deles está o tal médico que há três meses nos deu a notícia, a tentar consolá-los. Não percebo o que se passa, se me sinto tão bem e tão leve. Tão seguro e tão feliz. Finalmente com calma e paz em espírito. Olho para trás de mim, na direcção dos enfermeiros e então percebo. Vejo o meu corpo inerte, em cima da cama, com os olhos fechados e finalmente com uma expressão serena.